segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Dieta da verdade


Tinha dois problemas: estava acima do peso e era um mentiroso compulsivo. O primeiro deles era genético, herdado das famílias do pai e da mãe. O segundo foi adquirido; tornou-se crônico.

Sabia que algo precisava mudar. Como não tinha disciplina para tentar resolver um problema de cada vez, adotou uma tática drástica para perder os quilos e as mentiras que sobravam: para cada mentira contada, uma refeição a menos.

No início foi difícil. Chegou a passar dias seguidos sem comer – o que era uma tortura para uma boca acostumada a mastigar frituras e cuspir calúnias o tempo todo e sem peso na consciência.

Um deslize aqui, outro ali, foi seguindo com a dieta em sua rotina. Parecia estar dando resultado. Semanas depois, não acordou para ir ao trabalho. Havia morrido dormindo.

No laudo médico, o motivo da morte: desnutrição.
No laudo moral: não sobreviveu à verdade.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Sódio


Novos hábitos vieram à tona
Pacotes e pacotes de salgadinhos
Adoçavam o sangue e amargavam os dias
Queijo, cebola, presunto, pimenta
Um mundo de sabores para uma vida vazia

Tschhhhh
Um gole do piche queimava a garganta
E zerava o paladar para mais pacotes e pacotes de salgadinhos
Que adoçavam o sangue e amargavam os dias
Queijo, cebola, presunto, pimenta
Um mundo de sabores para uma vida vazia

Viciado em sódio
Um ódio só

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Lapso


Só olhei, sem a menor das intenções.
Na verdade a intenção era olhar. Só olhar.
Sem nada de mais.
Sem nada demais.

Olhar para ver melhor, admirar melhor.
Olhar por olhar.
Porque estava ali.
Porque era bonito.

Olhar porque a comida não estava tão boa.
Porque o prato não estava tão colorido, porque não havia apetite.
Olhar pois ele também me olhava. Não sei se tinha a intenção de olhar.
Mas olhava.

Nos olhamos por um tempo.
32 minutos.
28 garfadas.
5 bocejos.
2 abanadas de mosquito.
1 toque de celular.

Nos olhamos até sua dona chegar.
Essa, não olhou nem pra ele, nem pra mim.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Passado


Passou
A passos lentos
Miudinhos como grãos de areia
Grãos de chumbo
Chumbo grosso

Um tiro no peito

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Tenha fé



- Mas tenha fé! A fé é muito importante.

O porteiro/segurança/faz tudo disse isso de dentro de seu paletó 1 número maior do que profere a etiqueta, norma culta do figurino.

- Mas demora muito? A interrogação foi completada com um biquinho de birra mimado.

A mocinha bonitinha e fresquinha dentro de sua blusinha cavadinha não via a hora de chegar o frigobar para guardar sua coca-cola, que já não estava estupidamente gelada e poderosa como no comercial.

- Vou lá ver pra você... deve tá no galpão. É que não deu tempo de mim tirar tudo de lá.

Parou as mil coisas que estava fazendo e foi resolver o problema da moça que nem sabia direito o que fazia - só sabia que ganhava mais que ele, que não passava calor e que sairia do trabalho e pegaria um cineminha.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

TOC


Foi e voltou várias vezes.
Foi e voltou.
Foi.
Sem a intenção de voltar.
Mas voltou.
Voltou várias vezes.
Voltou antes mesmo de ir, algumas vezes.
Voltou sem sair do lugar, na maior parte das vezes.
Foi, novamente.
Só foi.
E não voltou.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Expressões


Ki ki ki, ki ki ki

Como se a cabine do banheiro fosse uma bolha
E poupasse os ouvidos alheios de fofoca
De mentiras
De verdades
“Você viu a roupa dela?”
“Vi, menina. E tá sabendo que já tão de olho?”
“Jura? Quem? Me conta!”


Ka ka ka, ka ka ka

Como se a vida fosse uma longa gargalhada
E obrigasse todo mundo a rir de alegria
De dor
De mágoa
“Fala de novo!”
“Ai meus Deus, tô até passando mal.”
“Só você mesmo!”


... ... ..., ... ... ...

Como se o silêncio fosse a coisa certa a se falar
E sugerisse a verdade entre os espaços
Os espasmos
Os espantos
“... ... ... .... ...”

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Eleição


Debaixo do viaduto, que divide o preço da pizza entre até 20 reais e acima de 50.
Ali vive gente que não tem dinheiro nem pro pão, imagine pra pizza.
Mas comem as sobras da sobremesa fina do rico.  Sabem que lixo de pobre vem em sacolinha de supermercado. Já lixo de rico vem em sacos azuis, uma espécie de uniforme pros restos.
Debaixo do viaduto, que triplica o preço dos imóveis de um dos lados.
O vai e vem dos carros os acorda toda manhã. Já sabem que o barulho que os desperta vem das latas velhas dos pobres. Os carros dos ricos não roncam, não batucam, não rosnam.
Debaixo do viaduto, que separa o luxo do lixo.
Ali os candidatos passam uma vez a cada quatro anos. Vão do lado rico para o lado pobre e, no meio do caminho, bem debaixo do viaduto, aproveitam para comprar votos. Votos que custam, em média, menos que a pizza de até 20 reais.

sexta-feira, 15 de junho de 2012


Sem tiro na cabeça
Sem faca no peito
Sem tortura
Sem chantagem
Sem ameaça
Sem dinheiro
Sem extorsão
Sem direito
Sem surra
Só censura
E assim se cala a boca do sujeito

terça-feira, 29 de maio de 2012

Sinceramente


Ouvi a verdade da boca mais sincera.
Há tempos era uma boca distante. Desde sempre, a mais próxima.
Engraçado como as palavras vindas dela batiam fortes, mas não doíam.
Batiam brutalmente fortes, mas não doíam.
Batia também a saudade daquela sinceridade.
Batia brutalmente forte. E doía.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Pena


A pena, olhando para a pena, sentiu pena de sua solidão.
- Por que vagas sozinha? – perguntou a pena à pena.
- Estava fraca demais e caí da asa da minha liberdade.
- Que pena.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Hoje não

Viva intensamente o seu passado
Esqueça o hoje
Ignore o amanhã
Sofra, choramingue
Remoa tudo
Tudo
Tu

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sem parar

Correu tanto, tão rápido, que nem viu a vida passar.
Não viu a cor da rosa que relava na janela no quarto.
Não viu a cicatriz desenhada de tanto trombar na pressa.
Nem a rachadura no canto da parede da sala.
Nem a correspondência anônima de alguém que amava.
Correu tanto, tão rápido, que mal passou pela vida.
Não ouviu a história que a mãe contava.
Não ouvia a crítica que o sábio dava.
Nem a música orquestrada pelo vento e as folhas.
Nem o sussurro de alguém que amava.
Correu tanto, tão rápido, que passou mal pela vida.
Não viveu o momento que insistiu em acontecer.
Não viveu a alegria de tranquilo adormecer.
Nem o êxtase de acertar e reconhecer.
Nem a maturidade de errar e não sofrer.
Correu tanto, tão rápido, que nem viu a vida acabar.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Não conto

Não quero escrever um conto pensando em escrever um conto. Nem me importo se o que chamo de conto não se parece com um conto. O que quero contar vai além do conto. Vai além dos dias, das noites. Do sapato molhado e dos espirros vazios. Dos passeios sozinha pelo centro. Da companhia do gato preto. E do branco e preto. Do prato cheio e do estômago vazio. Do prato cheio e do estômago cheio. Da música alta no trânsito. Da vontade de correr como antes. Da paz que o silêncio já trouxe. Do silêncio que não dá vontade de quebrar. Do conto, que nem mais conto as linhas e os pontos.