terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Tempestade

tempestade
assusta
e faz até pensar
que o céu
é sempre preto

mas nem a noite
ele é preto:
há o brilho

das estrelas

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Máscara

quando caem
as máscaras
sobram
sobre o chão
restos
de mim
e de você

só nos resta

esquecer

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Licor

a garrafa
de licor
em cima
do armário
acumulava pó
em volta do pescoço

os dedos
desabituados
a destorcer
tampas
desistiram
e deixaram
a sede
na mão

o copo vazio
deixado na pia
ali ficou

acumulando pó

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Mapa

o mapa
dobrado ao meio
e ao meio
e ao meio
e ao meio
desgastou
as estradas conhecidas

no lugar delas
agora há
espaços em branco

caminhos

para o desconhecido


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Ótica

um dia
fui viver de paisagem

tudo o que via
era miúdo e perfeito

longe dos olhos
não há rachadura
defeito
nem o que foi desfeito

já de perto,
não sei porquê,
quase tudo tem erro

até o cabelo
da moça mais linda
visto sem lupa
tem ponta dupla

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Tsunami

quando tudo
estava pesado demais
e a voz dentro
insistia em gritar
ela segurava
o grito

em seu silêncio
desabafava com os pés
criando tsunamis

em poças d’água


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Versos

machuquei
a árvore
para não perder
a poesia

era só o que tinha:
eu
a árvore
e uma pedra
achada no chão

tatuei
os versos
no tronco
sem pedir

permissão

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Lava

escolheu
o braço
a dobra do braço
como ponto de pouso
e ali
descarregou
o que tinha
dentro de si

o veneno
aparentemente inofensivo
criou um vulcão
epidérmico
que quando apertado
coça
e solta lava vermelha


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Pupila

olhos
desadaptados
à luz
do sol
fecham-se
e criam
um escuro particular

desde que inventaram
lentes negras
ver a verdade
em suas cores fortes
deixou de ser

rotina

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Fôlego

o mergulho
e a subida
pedem por fôlego

opostos
que usam
da mesma graça
para evitar

a desgraça

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Vãos

lábios trincados
deixavam espaços
sem serem preenchidos
pelo batom

a boca, quieta,
nada revelava

já a tentativa
de um sorriso
escancarava os vãos
vazios de cor

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Dados

dados
processados
com o corpo
na horizontal

a bateria
quase sem carga
aguenta
mais cinco minutos
de águas passadas

cinco minutos
se passam:
o corpo
apita o fim
da carga
e o escuro
traz um pouco

de paz

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Conservas

faz conservas
e prolonga
a vida
de pepinos
cebolas
e outras coisas miúdas

coloca em potes
cheios de líquido
e sal
a própria vontade

de viver para sempre

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Reencontro

Fazia tempo
que a sombra e o chão
não se encontravam.

O último encontro
tinha sido
há algumas semanas.
Um encontro rápido
como quando
a gente esbarra
por acaso
num amigo
na multidão.

Hoje, porém,
sombra e chão
conversaram
quase uma tarde inteira.

As nuvens
que os separavam
foram separar
sombra e chão
de outro lugar.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Térmica

trazia
a garrafa térmica
no bolso
da bolsa
cheia
de líquido quente
fervido às pressas
antes do sol nascer

quando o sol nascia
declarando o dia
tirava do bolso
da bolsa
a garrafa térmica
e bebia
o líquido

morno 

terça-feira, 29 de julho de 2014

Varal

o varal
hospedava
apenas três peças
de roupa

nenhuma delas
muito velha
e todas elas
meio mortas

o peso
da água
desmaiava
mangas
pernas

e saia

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Pastilha

a língua rosa
de tanta pastilha
sabor framboesa
dava uma cor
meio da infância
à boca
e um certo
tom de graça
tão necessário
naqueles dias
frios
de sol cenográfico
que só esquentava
o que estava

mais próximo das nuvens

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Toca-discos

o toca-discos
varria as linhas
do vinil
e levava
a sujeira
na ponta do pé

a cada giro
o pé
enroscava
no pó
limpando
o caminho
para a melodia

o pé
que nunca se cansava
só parava
quando a música enjoava
               a visita chegava
               a noite acabava


quinta-feira, 10 de julho de 2014

Doação

tirou do armário
o que não servia
não queria
e nem sabia
que tinha

tirou tudo
e colocou de volta
só o que usaria

o par de asas
ficaria ótimo

com os pés descalços

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Tatuagem

tatuava
o papel
com a caneta
de ponta mais fina
e de tinta mais forte

ele
parecia não sentir dor
ou desconforto

sua pele lisa
e antes pálida
ganhava cor
e a forma
de um livro

de poemas

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Escamas

Fizeram
um puxadinho na obra
e sumiram
com o tantinho de mar
que ainda tinha

Os peixes dali
que há algum tempo
já nadavam apertados
foram obrigados
a sair da água
e ficar em pé
sobre os pés
que nem tinham

Uns viraram almoço de gente.
Outros, janta de pássaro.
Os que conseguiram andar,
com medo de morrer,
se vestiram de homens

e ajudavam a matar

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Resistência

corcunda ficou
a última flor
que resistiu
dentro do vaso

a perna fina
mal ocupava um espaço
dentro daquela bocarra
de fundo azul
e bordas douradas

mesmo corcunda
e cabisbaixa
preferia ali ficar
a ter que murchar

a corcundice
deu à flor
um ângulo novo
para explorar


segunda-feira, 16 de junho de 2014

Fumaça

a fumaça
saiu fugida
da caneca

parecia feliz

dançava leve
subia
subia dançando
até se entregar
nos braços do ar

em tempos frios
fez todo sentido
a ideia
de que o calor

liberta

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Migração

um congestionamento
que há muito tempo
não se via

era tanto congestionamento
que naquele dia
os pássaros pareciam parados
em fila
em pleno céu
desafiando a gravidade

há muito tempo
não se via
um congestionamento assim
de bichos-penas
que não viam a hora
de acabar o rush
para voar em céus

de terras mais gratas


sexta-feira, 6 de junho de 2014

Hipnose

A mesa posta
abarrotada de tudo
o que os dentes 
podiam morder.
Garfos tilintavam
nas bordas das louças
e preenchiam os vazios
entre as conversas.
Tensão,
troca de olhares
e uma verdade
quase à tona.

No velho sofá
a família se espremia
para mais um capítulo
da novela.
Se esquecia
que nunca foi preciso
mais do que copos de plástico
para brindar

um fim de dia.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Bússola

placas
e rotas
espalhadas
por todos os cantos
da memória
indicam 
o que fazer
o que comer
o que dizer
o que...
o que...
o quê?

fácil mesmo
é estar perdido:
dentro da gente
tem um treco
chamado labirinto

terça-feira, 27 de maio de 2014

Outono

a pintura
da parede da sala
descascava
nas bordas superiores

pequenas lascas
do que um dia foi tinta fresca
caíam
num balé
que durava
até encontrar o chão

da janela
dava para ver
que as folhas das árvores
também dançavam balé

o Outono
chegou tão forte
aqui dentro
que não coube na sala

e invadiu as ruas

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Réplica

Documentos empilhados
criam torres de papel
enormes
sobre a mesa:
uma réplica
da cidade
vista pela janela

Pela janela
também vem
o ar frio
cheirando a concreto
sempre fresco

Pela janela
vem também
o vento
que quase abala
as estruturas
das torres de papel:
blocos de folhas
feito andares
unidos

e engravatados com clipes

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Encomenda

Hoje
um trecho do mar
chegou em casa.

Tem dias que não chega nada.
Tem dias que chega o óbvio.
Tem dias, como hoje,
que chegam coisas grandes.
Mar, montanha, onça.
Às vezes, cidades inteiras
- vistas de cima.

O vão
entre a porta e o chão
é uma espécie
de portal

terça-feira, 13 de maio de 2014

Fuga

deu duas voltas na chave

deu partida
escolheu
o longe
como destino
e seguiu

cercado
de tanta lonjura
a tontura
o parou

as curvas
da estrada
revisitavam
o corpo dela

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Mandala

a mandala
pendurada por um gancho
era um brinco
do teto

um brinco grande
só de um lado
com suas penas nas pontas
fazendo cócegas no ar

o ar ria
e, a cada riso,
soprava a mandala

fazendo-a dançar

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Claridade


luz
clara demais
invade a fresta
feito cupido
mira os olhos
e os acerta
em cheio

a cegueira
logo passa
a boca seca
água caça
a memória de ontem
não mais ameaça

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Observação


os pés
secavam
e ressecavam
apoiados na janela

a posição,
aparentemente incômoda,
criava
o desconforto perfeito
para observar
imperfeições

de lá
e de cá

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Escape



para cada
meia dúzia
de anotações coladas
uma dúzia
de novas coisas
a serem feitas
desfeitas
refeitas

conta
que não fecha
que só abre
ainda mais
o buraco
na parede
feito
clandestinamente
pela mente

dúzias inteiras
de pensamentos volantes