terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Descuido


ao final
de cada frase sua
a última letra se arrasta
e passa 
uma rasteira

logo em mim

que firmei os pés no chão
mas larguei frouxo
coração
e pensamento

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Dia


hoje o dia ficou pra trás

acordei antes dele
levantei na ponta dos pés
pra que ele
não acordasse comigo
e não me devorasse
como faz
todos os dias

é desse plural
'todos os dias'
que hoje eu fugi

amanhã o dia me alcança
eu sei

mas hoje não
hoje sou só eu
singular

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Feridas


tenho o cuidado
de deixar um canto aberto
em cada uma
das minhas feridas

tremo
só de pensar
o que seria de mim
sem sangrar

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Anonimato


sinto
em códigos
me entrego
por debaixo dos panos

em tempos de ódio
amar virou
verbo clandestino

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Disparo


a palavra
é gatilho

mire bem
antes do disparo
cuidado
com quem cruza o destino

não se iluda
com sua arma:

a fala
é falha
e a bala
se me acha
bate e volta
pelo mesmo caminho

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Baile


do coração
faço um salão
onde arrasto os móveis
e danço
sem contar as horas
e sem conter os passos

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Contemplação


mergulho
em bancos de praça

pouso as costas
em qualquer assento
que me deixe
cara a cara
com o céu

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Unidade de medida


por que raios
tem que ser um segundo
entre um tic
e um tac?

não poderia ser
um infinito instante
ou um carinho sopro?

dispenso relógio
e tudo o que faz
a vida ter pressa
dela mesma

se me atraso
não conto a demora
em minutos

meu tempo
tem duração
de quadras caminhadas

domingo, 26 de agosto de 2018

Sangue

o corte no corpo
não fecha
e o sangue escorre
pela garganta

na língua,
o gosto forte
de ferro

bebo
meu próprio sumo
me alimento
de mim

não me desperdiço:
renasço

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Pseudo Sol


quem vê o sol
através da janela fechada
comete o erro
de se aventurar na rua
de braços de fora
e alma nua

o vento, mesmo frouxo
corta a pele
e trinca os ossos

o frio
mascarado de sol
sempre pune os arrogantes

sábado, 21 de julho de 2018

Verme


de todos os bichos
o verme
é o mais democrático:
come corpo
de tudo que é tipo
de gente

gente gorda
gente magra
gente branca
gente parda

come tudo
o que dá pra comer
menos o osso
que é duro demais
e o caráter
- disse ele que costuma ser 
  de procedência duvidosa

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Por um fio


passei as mãos pelos cabelos com a desculpa de arrumá-los.
fiz dos dedos dentes de pente.
passei uma, duas, três vezes
alisando os fios com aparente carinho,
como um gato que se põe de barriga pra cima, num certo charme,
antes de se firmar no chão e atacar o passarinho.
eu, passando as mãos pelos cabelos, era o gato.
os dedos, feitos dentes de pente, logo virariam pinça
e arrancariam qualquer fio que julgasse fora do padrão.
puxei um, dois, três.
olhei de perto os fios arrancados e considerados inaptos
para permanecer nos cabelos.
procurei defeitos e inventei desculpas
que justificassem o assassinato.
tarde demais.
agora trago as mãos sujas por ter dado fim
a uma parte de mim.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Hemorragia


o poema
que coloquei no papel
não para de sangrar

se o papel estava limpo
e meus dedos sem cortes
só pode ser o poema
que sangra

como estanca?

tentei gelo no início do verso
água corrente na final da rima
até açúcar nas entrelinhas
e nada

deixo estar

esse poema
ainda deve ter muito
o que vazar

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Maturidade?


a criança pequena
tira e põe 
os brinquedos 
na caixa

ela quer tudo
ela quer nada
ela muda de ideia
se joga no chão
chora
esperneia

a criança grande
tira e põe
o que sente
no peito

ela quer tudo
ela quer nada
ela muda de ideia
mas não se joga no chão
não chora
não esperneia

a imaturidade da criança pequena
faz com que
passado alguns minutos
sua vida siga em frente

a maturidade da criança grande
faz com que
passado alguns anos
sua vida ainda esteja parada no tempo

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Melodia


se um dia
meus poemas
virassem canção
eu seria
melodia

seria ritmo
seria valsa
seria baile
e até trilha

mas enquanto
meus poemas
não passam de versos
eu sou só
poesia

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Limitação


antes fosse
só o tamanho
dos nossos corpos
que nos limitasse:
alcançar o pote
pular (toda) a poça
ver por cima do muro

pra caber no mundo
e não incomodar
gente grande
temos
que encolher
nossos planos
e limitar
nossos sonhos

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Formas


fico pensando
quais formas teriam
as coisas que sentimos

o alívio, por exemplo,
seria uma massinha com cheiro
tipo essas
que as crianças brincam

o medo
seria algo pontiagudo
que machuca a mão
se segurado por muito tempo

a raiva
seria como uma pedra em brasa
que de longe
já se pode sentir o calor

o amor, acredito,
seria um dente de leão
que vai se soltando
a cada sopro mais forte

terça-feira, 22 de maio de 2018

Cratera


o corte
pequeno e fundo
que trago
em uma das mãos
parece a miniatura
de uma cratera

é como se eu olhasse do céu
uma cratera na terra:
uma paisagem até bonita
levando em conta
que é fruto
de um desastre
um terremoto
um meteoro
ou até mesmo
de um vulcão

a cratera que carrego
em uma das mãos
é também uma paisagem bonita
levando em conta
que é, igualmente,
fruto
de um desastre

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Infância


meu traço
é infantil

ainda hoje
desenho
como sempre
desenhei

o pulso torto
a mão sem jeito,
meio virada
a ponta do lápis
forçando o papel
numa brutalidade
de menina

meu traço
é infantil
e disso faço
um jeito
de voltar no tempo