quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Concreto

No topo daquela árvore jurei o meu amor
E à toda prova moldei o que chamei de lar
De barro duro fiz as paredes
De pequenas pedras as enfeitei para seu olhar

Se soubesse que o amor seria perecível
Trabalho não teria em construir
O que um dia sonhei ser nosso
O que várias noites, ansioso, não dormi

Logo que você se foi
O topo daquela árvore tombou ao chão
Ali ergueu-se um robusto prédio
Ali enterrou-se meu coração

Arrumei um cantinho para mim
Nos vãos daquela estrutura fria
E hoje sozinho sigo
Como João de Ferro e Viga

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O rio

Lá de cima a gente via o rio salgado que passava. Diziam que não podia chegar muito perto, muito menos tocar naquelas águas. Diziam que quem ia até lá não voltava mais. Acho que ninguém sabia ao certo o motivo.
Por que alguém haveria de infringir? Por que esse alguém seria eu? Seria eu. E um dia, fui.

De madrugada, quando a lua colocava-se a iluminar a copa das casas, saí cidade afora. Lembrava-me das histórias que meu avó contava sobre o rio. Em uma delas, ele descrevia um atalho por entre os morros. Não havia placas, nem guardas. Na ausência de caminhos, segui o que me mandava as lembranças.

A cada flash da memória, um passo na direção certa e um aperto no peito. Havia encontrado a trilha proibida. E, em seu fim, encontraria a verdade.

O êxtase de chegar era maior que o bom senso; a curiosidade, maior que a disciplina. Aproximei os pés da margem e, num instinto, mergulhei as mãos nas águas e trouxe até os lábios. Conhecia aquele gosto. Era de lágrimas.

E agora, eu era a nascente.

Cegueira

Enquanto ria por dentro, continuou seu percurso. Subiu a rua sem se preocupar com o mendigo em que quase tropeçou ou com a criança que lhe estendeu a mãozinha suja e ressecada suplicando trocados (ou um abraço).
Enquanto ria por dentro, acendeu seu cigarro. Cada tragada era proporcional à ignorância diária que aos poucos matava seus alvéolos.
Enquanto ria por dentro, parou no boteco e pediu um salgado. A pressa para chegar existia, mas sempre havia uma exceção para a branquinha de saideira.
Enquanto ria por dentro, olhou os cartazes dos filmes adultos. Os mesmos filmes que vinha assistindo desde a sua desgostosa adolescência.
Enquanto ria por dentro, entrou no beco e cumprimentou o homem. Logo saiu com o pacote dentro da sacola amarela do mercadinho da rua de cima.
Enquanto ria por dentro, tomou o ônibus com os olhos mais atentos. Mas pouco se importou se o que estava fazendo era legal, moral, racional ou qualquer outra coisa de juízo.
Enquanto ria por dentro, desceu no ponto combinado, apertou a campainha do número 54 e foi recepcionado pelo magrelo de bigode, que abriu a porta apático.
Enquanto ria por dentro, entregou o pacote em troca das poucas notas sujas e colocou no bolso.
Enquanto ria por dentro, virou-se e disse até logo. A alegria de ter a moeda de troca para mais uma noite de vícios o impedia de desconfiar do mundo.
Enquanto ria por dentro, foi atingido pelas costas. As notas sujas voltaram para as mãos do magrelo de bigode e seu corpo foi jogado na fossa.
Enquanto sangrava por fora, o mendigo continuava sendo alvo de tropeços e a criança estendia a mãozinha suja e ressecada suplicando trocados (ou um abraço).

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Caos

Na beira do caos,
sem eira nem beira
Ia a triste senhora
cruzando a barreira.

Iam todos também,
sem fé nem piedade
Engarrafados em mágoa,
rancor e vaidade.

Parados em fila,
mortos já estavam.
Pediam arrego
Ao Deus que nunca acreditaram.

À beira dos maus,
murmurando asneiras
E assim terminando
mais uma quinta-feira.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Ciclo

Mais uma vez, ligo a televisão. É tarde e o cansaço toma conta do corpo que, com muito esforço, caminha pelo corredor em direção à cozinha. Na geladeira, somente umas latas de cerveja. No armário, a solitária garrafa de vinho. “Só uma latinha”, penso.

O sofá duro e fedorento me aguarda de braços abertos. Nele repouso as costas magras e fixo o olho na tela, num olhar que vê, mas não vê. A hipnose é necessária e a palavra, falha. Duas, três, quatro latas. O álcool começa a amolecer as pernas. “Será que falta muito para adormecer o cérebro?”. O vinho, que era para depois, entorno agora. Dois, três, quatro copos. A droga acaba rápido e prolonga o acabar da vida.

Acordo com as costas moídas pelo sofá duro e fedorento. A visão dói, a cabeça lateja. O banho não lava a alma e, imundo, parto para a condução rumo a Praça da Sé.
Dez horas depois, estou em casa e, mais uma vez, ligo a televisão.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Bailarina

Pobre bailarina. Quando criança sonhava ser artista.
Nos palcos se postava elegante, impecável. Aqueles pés machucados de tanto ensaiar deslizavam... deslizavam... passos tão naturais que encantavam até os olhos mais desatentos e os corações mais rudes.
Na mocidade, sua beleza formava filas de jovens apaixonados querendo a honra de sua companhia. Mas jovens apaixonados não atraiam a bailarina. Ela era amante dos palcos, do calor dos holofotes e das silhuetas que a ovacionavam na plateia.
Naquela tarde fria e vazia, no corredor do Teatro Municipal, viu uma daquelas silhuetas de perto. Os olhos azuis penetraram fundo e o esboço de um sorriso nada tímido foram suficientes para desequilibrar aquela que flutuava na ponta dos pés.
Ele passou a acompanhar cada ensaio, cada espetáculo. Respirou do mesmo sonho que ela. Fez seu o sonho dela. Juntos, fizeram dos dias e das noites amantes.
Pobre bailarina.
Amou pela primeira – e última – vez.
Quando ele se foi, sem avisar, levou consigo o coração da estrela.
Aqueles pés machucados de tanto ensaiar agora deslizavam pela casa, sem rumo, sem encanto.
Na velhice, suas rugas contavam as histórias, as alegrias e a tristeza que teve na vida...
Naquela tarde fria e vazia, no corredor do Teatro Municipal, depois de longos anos de martírio, despediu-se dos palcos que há tempos não pisava. Despediu-se também da vida e foi ser feliz: não com a luz dos holofotes, mas com a daqueles olhos azuis.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O troco

Em algum lugar ela se perdeu, ou me abandonou. Prefiro pensar que se perdeu. Partiu só, deixando-me tão mais só. Maldita esperança. Se não o podia ser, tornou-se de propósito. E além de maldita, era atrevida. Ô bichinha atrevida! Me fez acreditar que era possível.
Que, quando os dias amanheciam belos, terminavam saudosos.
Que a chuvinha lá fora matava a sede da alma.
Que aquele colchão jogado era o canto mais aconchegante do mundo.
Que a pitadinha de tempero dava outro gosto à vida.
Que o café da cafeteira era o melhor estímulo do dia.
Que havia talento por trás da frustração.
Que havia respeito por tanta devoção.
Que o calor daquele corpo era o consolo dos problemas.
Que eu era forte o suficiente para me entregar fácil assim.
Que o amor existia. Que o amor existia.
Agora ela me quer de volta, aquela ordinária. Vem de fininho, com um papinho dos mais furados, tentando pegar de volta o espaço que deixou vazio. Boba ela em pensar que ele estaria ali, do mesmo jeitinho. A mágoa entrou no lugar assim que ela se foi. E se mostrou mais amiga e confidente. Agora, esperancinha, eu te digo umas coisas.
Que, quando os dias amanheciam belos, terminavam tristes.
Que a chuvinha lá fora matava a alma, não a sede.
Que aquele colchão jogado era o canto mais enfermo do mundo.
Que a pitadinha de tempero estragava o gosto da vida.
Que o café da cafeteira era amargo demais.
Que não havia mais talento, apenas frustração.
Que não havia respeito por tanta devoção.
Que o calor daquele corpo era a fonte dos problemas.
Que eu não era forte o suficiente para me entregar fácil assim.
Que o amor não existia. Que o amor nunca existiu.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Amor impróprio

Quando deu por si estava perdido. Nada que o tenha feito assustar, afinal, perdido já se sentia há tempos. Por um instante pensou nos filhos e mulher. Lindas crianças, ótima companheira. Por outro instante se culpou pela ausência e desapego. Não esteve próximo o quanto achou que estava, não se entregou ao amor o quanto deveria. No meio da mata fechada, o coração foi fechando aos poucos, assim como seus olhos. Apertada, a lágrima caiu e, com ela, a forte chuva. Ficou ali, parado, tentando lavar a alma. Adormeceu com frio e acordou com fome. Pensou na vida (...). Imaginou se agiria diferente e soube que não merecia uma segunda chance. Rezou pelos filhos, desculpou-se para com a esposa e pôs-se a andar. Não comeu para que suas forças acabassem aos poucos. Dias percorridos a pé, magro e sujo de
terra, sentiu-se finalmente limpo e leve. De tão leve, subiu aos céus.