quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Cegueira

Enquanto ria por dentro, continuou seu percurso. Subiu a rua sem se preocupar com o mendigo em que quase tropeçou ou com a criança que lhe estendeu a mãozinha suja e ressecada suplicando trocados (ou um abraço).
Enquanto ria por dentro, acendeu seu cigarro. Cada tragada era proporcional à ignorância diária que aos poucos matava seus alvéolos.
Enquanto ria por dentro, parou no boteco e pediu um salgado. A pressa para chegar existia, mas sempre havia uma exceção para a branquinha de saideira.
Enquanto ria por dentro, olhou os cartazes dos filmes adultos. Os mesmos filmes que vinha assistindo desde a sua desgostosa adolescência.
Enquanto ria por dentro, entrou no beco e cumprimentou o homem. Logo saiu com o pacote dentro da sacola amarela do mercadinho da rua de cima.
Enquanto ria por dentro, tomou o ônibus com os olhos mais atentos. Mas pouco se importou se o que estava fazendo era legal, moral, racional ou qualquer outra coisa de juízo.
Enquanto ria por dentro, desceu no ponto combinado, apertou a campainha do número 54 e foi recepcionado pelo magrelo de bigode, que abriu a porta apático.
Enquanto ria por dentro, entregou o pacote em troca das poucas notas sujas e colocou no bolso.
Enquanto ria por dentro, virou-se e disse até logo. A alegria de ter a moeda de troca para mais uma noite de vícios o impedia de desconfiar do mundo.
Enquanto ria por dentro, foi atingido pelas costas. As notas sujas voltaram para as mãos do magrelo de bigode e seu corpo foi jogado na fossa.
Enquanto sangrava por fora, o mendigo continuava sendo alvo de tropeços e a criança estendia a mãozinha suja e ressecada suplicando trocados (ou um abraço).

Nenhum comentário:

Postar um comentário